Seja a “Carta de Amiens” da CGT (1906) o manifesto do sindicalismo revolucionário?

René Berthier

Greve Geral de 1917 em São Paulo.

O congresso da CGT realizado em 1906, em Amiens, no Norte de França, aprovou uma resolução que ficou então conhecida, a partir de 1910, como a “Carta de Amiens”.

Esta resolução é unanimemente considerada como a declaração de princípio do sindicalismo revolucionário. Não estou de acordo.

Uma leitura completa dos anais do congresso mostra uma realidade que está muito longe do mito que foi feito, mas, ao mesmo tempo, uma realidade muito mais comovente1. Vemos uma corrente sindicalista revolucionária que é certamente ainda poderosa, mas encurralada, na defensiva, face aos representantes de poderosas federações reformistas, e que defende suas posições com determinação e coragem…

A realidade que percebemos não é a do mito que foi construído após o fato. Podemos ver que a oposição à política confederal (ou seja, aos sindicalistas revolucionários) é extremamente vigorosa, que os golpes às vezes são violentos. Os sindicalistas revolucionários têm que enfrentar forte oposição; eles são seguidos de perto e perseguidos pelos delegados reformistas e socialistas, cujas forças estão longe de ser insignificantes, e eles têm que responder aos golpes recebidos.

A votação da famosa “Carta de Amiens” por uma esmagadora maioria de delegados – 834 votos a favor, 8 contra e 1 branco – revela por si só a extensão das concessões que tiveram de ser feitas aos reformistas: os anarquistas também votaram a favor. De fato, a resolução de Amiens nada diz sobre a luta contra o Estado, contra o exército, contra o parlamento. As atas do congresso mostram uma verdadeira ofensiva dos reformistas contra o alegado desrespeito da liderança confederal com a regra da “neutralidade” e contra as posições “políticas”. A propaganda anti-eleitoral é assim atacada com violência porque é vista como uma posição política que ofende as convicções dos membros que confiam nos partidos políticos. Da mesma forma, o anti-militarismo é visto como uma violação da neutralidade sindical porque ofende os nacionalistas!2

A resolução Amiens é geralmente apresentada como um compromisso entre a corrente revolucionária e uma fração da corrente reformista para bloquear os guesdistas, cujo objetivo era a submissão do sindicato ao partido socialista. Na realidade, porém, a “Carta de Amiens” consagrou a divisão do trabalho entre o partido e o sindicato, o que satisfez tanto os guesdistas como os socialistas reformistas.

A votação desta resolução ocorre num contexto defensivo para os sindicalistas revolucionários e os anarquistas da CGT. Se, em 1906 e nos anos que se seguiram, o sindicalismo revolucionário ainda era poderoso, recuou face à ascensão da corrente reformista. Além disso, greves muito duras enfraqueceram a liderança confederal. Houve uma terrível greve em 1908-1909, precedida e seguida de provocações policiais, nas quais o Exército disparou contra os grevistas, matando várias pessoas. Esses eventos resultaram na prisão de quase todo o Bureau Confederal da CGT. Os reformistas aproveitaram para ocupar as posições deixadas vagas. Esta repressão infligiu um duro golpe à corrente sindicalista revolucionária. Novas federações, poderosas mas controladas pelos reformistas – Têxteis, Minas, Artes Gráficas – juntaram-se à confederação, contribuindo a modificar o equilíbrio de poder. Gradualmente, os mandatos dos sindicalistas revolucionários e anarquistas não foram renovados, e os militantes que os substituíram eram reformistas.

É preciso compreender que, na mitologia do movimento operário francês, o princípio da unidade era inegociável. A ideia de uma cisão era inconcebível, mesmo para os anarquistas da CGT. A Carta de Amiens foi portanto um compromisso tornado necessário para manter a unidade da confederação, por outras palavras, para evitar uma cisão. Foram abandonados alguns pontos: críticas ao Estado, ao parlamento, ao exército. O voto da esmagadora maioria a favor da resolução de Amiens foi claramente entendido como uma derrota para os anarquistas. A Carta de Amiens deve, pois, ser considerada pelo que é, um texto de compromisso, um mal menor, de forma alguma um manifesto sindicalista revolucionário. Pelo contrário, é um sintoma do recuo do sindicalismo revolucionário.

Recordemos que os militantes que formaram o sindicalismo revolucionário não eram todos anarquistas: existiam socialistas, blanquistas e outras correntes. Victor Griffuehles, que foi secretário geral da CGT (com Émile Pouget como deputado) no auge do sindicalismo revolucionário, era de origem blanquista. Que os anarquistas eram um elemento determinante, isso é certo, mas não devemos esquecer que o sindicalismo revolucionário já existia, senão como um movimento explicitamente reivindicado, pelo menos como uma prática, quando Fernand Pelloutier publicou, em 20 de outubro de 1895, seu artigo “Anarquismo e Sindicatos Operários”3, que de fato expôs os princípios do sindicalismo revolucionário e convocou os anarquistas a se envolverem no movimento sindical.

Sabendo que a CGT foi fundada um mês antes, que Pelloutier foi eleito secretário da Federação Nacional de Bolsas de Trabalho quatro meses antes e que os ativistas das Bolsas eram hostis à CGT4, podemos facilmente adivinhar onde Pelloutier queria que os anarquistas se envolvessem. Na verdade, pode-se dizer que a gestação do sindicalismo revolucionário ocorreu, sem dúvida, dentro da Federação Nacional de Bolsas do Trabalho.

Ao invés de mitologizar o papel dos anarquistas na corrente sindicalista revolucionária, seria mais preciso ater-se aos fatos e fazer uma análise de classe da situação. Muitos anarquistas “específicos” que estavam em grupos anarquistas, mas não na CGT encheram seus jornais de ataques à Confederação. Eles acusaram a menor atividade sindical de ser “reformista”. Repreenderam seus companheiros da CGT por “se perderem no sindicalismo”.5

Todos esses militantes teriam sido muito úteis (se de fato tivessem sido trabalhadores assalariados e pudessem se sindicalizar, nem é preciso dizer) para apoiar a luta dos anarquistas sindicalistas contra o reformismo, não usando a CGT como um mero campo de propaganda anarquista, mas lutando no terreno, todos os dias, lado a lado com os trabalhadores em luta. Somente desta forma eles poderiam ter ganhado um pouco de credibilidade e sua propaganda anarquista poderia ter sido ouvida.

Logo após o congresso de Amiens, dois congressos socialistas foram realizados em sucessão, durante os quais se pode ler testemunhos de extrema satisfação dos líderes do partido. Pode-se dizer que o congresso de Amiens foi a aliança dos líderes da tendência “modernista” do sindicalismo revolucionário representado pelo grupo da Vie Ouvrière liderado por Pierre Monatte, e dos reformista contra os anarquistas.

Os delegados do congresso socialista estavam extremamente satisfeitos com o congresso de Amiens. Édouard Vaillant (deputado socialista, ex-anarquista) declarou que o congresso de Amiens foi uma vitória sobre os anarquistas, e Victor Renard, guesdista e líder da poderosa federação têxtil CGT, triunfou dizendo que “os anarquistas que predominam na CGT concordaram em colocar um focinho em si mesmos”.6 Estamos falando aqui de anarquistas, não de sindicalistas revolucionários. Uma leitura cuidadosa dos debates do Congresso de Amiens mostra claramente que o inimigo dos reformistas são os anarquistas, não os sindicalistas revolucionários.

Édouard Vaillant, novamente, declarou durante este congresso socialista:

“Os membros da Confederação Geral do Trabalho mostraram, em Amiens, que a sua concepção concorda com a nossa muito mais do que acreditávamos e o Congresso de Amiens chegou a uma conclusão que nenhum de nós poderia ter esperado. Isso é tudo que poderíamos esperar e a decisão de Amiens nos dá total satisfação.”7

Essas observações revelam, ao lado de uma corrente reformista na CGT – Victor Renard (Têxtil), Keufer (Artes gráficas) e tantas outras – a presença de uma corrente anarquista obviamente forte, mas que sofreu uma derrota no Congresso de Amiens; e sabemos que, dentro da corrente sindicalista revolucionária, havia uma fração “modernista”, a de Monatte e La Vie Ouvrière, que era oposta aos anarquistas. Pode-se supor que essa fração “modernista” provavelmente se aliou aos reformistas contra os anarquistas. Monatte terá um papel essencial na recusa da CGT em participar do congresso sindicalista revolucionário de 1913. Após a revolução russa, ele se oporá aos anarquistas que se recusaram a aderir à Internacional Sindical Vermelha. Há uma consistência real nesta série de posições.

Enquanto militantes e líderes do socialismo político podem ter se alegrado com o fato de os anarquistas terem se deixado “amordaçar”, esses anarquistas tinham em mente não criar as condições para uma cisão na organização sindical. A título de ilustração, muitos anarquistas da CGT não aprovaram a cisão da CGTU em 19218, nem aprovaram a cisão da CGT-SR em 1926. Portanto, podemos dizer que a maioria dos anarquistas sindicalistas da CGT tinha a preocupação principal de não levar a CGT a se dividir.

Outro fator no enfraquecimento do sindicalismo revolucionário foi a unificação do Partido Socialista em 1905. Até então, o movimento socialista estava dividido em meia dúzia de partidos ferozmente concorrentes. No entanto, a divisão do movimento socialista foi um dos argumentos dos sindicalistas revolucionários, que designaram a CGT como a única organização legítima dos trabalhadores. Sem dúvida, não é por acaso que a constituição de um segundo polo de identificação do movimento operário foi acompanhada pela ameaça de divisão na CGT.

A “carta” de Amiens não é de forma alguma o documento fundamental do sindicalismo revolucionário. Ao contrário, marca o início do declínio desse movimento.

Estas reflexões muito breves sobre o significado da Carta de Amiens sugerem que a história do movimento operário é complexa e mutável e não pode ser reduzida a esquemas simplistas. Os cinco anos antes da Primeira Guerra Mundial assistiram a mudanças profundas na classe trabalhadora internacional: em Espanha, os anarquistas, após terem desempenhado um papel destrutivo no movimento sindical, decidiram investi-lo em massa; em França, os anarquistas revelaram-se incapazes de tal decisão; na Argentina, formaram uma poderosa organização de trabalhadores anarquistas. Embora os contextos históricos ajudem a explicar estas diferenças de abordagem, não se pode descartar as más escolhas que foram feitas ao fazer o balanço dos fracassos do movimento libertário.

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NOTAS

1http://www.ihs.cgt.fr/IMG/pdf_12_-_1906_-_Congres_Amiens.pdf

2“Temos radicais, nacionalistas em nossos sindicatos, respeitamos suas crenças. Mas você, o que faz quando vota a favor da greve geral expropriatória? Você não respeita as opiniões dos radicais. Você também não respeita as opiniões dos nacionalistas quando faz antipatriotismo e anti-militarismo.” (Renard, líder guesdista da Federação Têxtil. – Ata do Congresso de Amiens: http://monde-nouveau.net/spip.php?article826)

3http ://monde-nouveau.net/spip.php?article17

4Quando a CGT foi fundada em 23 de setembro de 1895, a Federação das Bolsas de Trabalho já existia e constituía um polo de reagrupamento da classe trabalhadora já poderosa e bem organizada, sob a liderança do anarquista Fernand Pelloutier. A CGT foi formada por desertores da Federação Nacional dos Sindicatos, uma organização dominada pelos guesdistas, à qual os anarquistas se opuseram fortemente. Naquela época, a CGT estava mal organizada, era uma concha vazia, sem muita influência. A confederação ganhou importância após seu congresso de 1902, quando a Federação Nacional das Bolsas de Trabalho se fundiu com ela e os anarquistas se envolveram. Os ativistas da Bolsa de Trabalho foram, em geral, muito hostis a esta fusão, que foi, no entanto, considerada inevitável. Equacionar a fundação do sindicalismo revolucionário com a fundação da CGT em 1895, portanto, não tem base histórica, é ignorar a realidade. Seria mais correto dizer que o sindicalismo revolucionário surgiu dentro das Bolsas de Trabalho.

5Recordemos a frase de L. Merlino que censurou os anarquistas por se terem “atirado de cabeça para o movimento sindical”. L. Merlino, « Esperimento sindacalista », in Volontà, 22 juin 1913.

6Cf. « L’anarchosyndicalisme, l’autre socialisme », Jacky Toublet, Préface à La Confédération générale du travail d’Émile Pouget, Editions CNT Région parisienne, 1997.

7Minutes du congrès socialiste de Limoges, novembre 1906, pp. 94-95. Cf. https ://bataillesocialiste.files.wordpress.com/2008/07/congres1906o.pdf

8Confédération générale du travail-Unitaire.

Texto publicado em maio de 2024

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