Nem Estado, nem mercado

Abril de 2024

De uma forma geral, o texto que segue enfatiza as possibilidades de autonomias no serviço público que, entendido como direito, possibilita empreender uma resistência tanto ao Estado quanto ao mercado. Ou seja, ao invés de render-se à mera submissão aos ditames do liberalismo governamental, o lócus do serviço público pode ensejar a contestação organizada ao avanço da aliança entre Capital e Estado através da lógica e prática da autonomia. Em sendo assim, o servidor público e suas instituições representativas ganham nova centralidade estratégica nesse cenário.

Nem estado, nem mercado

Quando os grandes debates do século XIX foram colocados, logo conformaram-se dois blocos antagônicos bem definidos. De um lado os liberais e, do outro, os socialistas. Para os liberais tratava-se de entronizar o “deus” mercado e para grande parte dos socialistas, era o caso de erigirem-se altares para o “deus” Estado. Escavadas as trincheiras das forças beligerantes, entre elas ficava então a “terra de ninguém”. Um território sujeito a permanentes assédios de ambas as partes, local marginal, sem outra utilidade além de servir de corredor para avanços e recuos de escaramuças e ofensivas em massa.

Mas o campo socialista era plural, multifacetado e assaltado por tradições das mais diversas e, por vezes, tão antagônicas quanto o clássico modelo teórico acima rascunhado. Algumas tradições prestavam-se mais a figurarem na “terra de ninguém”, uma vez que se viam hostilizadas pela estadolatria de uns e mercadofilia de outros. Sendo assim, consideradas párias pelas forças monolíticas em confronto.

É dessa época o mutualismo, uma das formas históricas assumidas pelo socialismo desde os anos de 1830, com maior visibilidade nos territórios francófonos, mas não apenas. Um fenômeno tipicamente popular que cresceu à margem das outras formas de socialismo e que destas divergia principalmente sobre o papel desempenhado pelo Estado. Radicalmente autônomo, o movimento mutualista cresce alimentando-se de uma profunda desconfiança do Estado e do mercado. Nutria-se de experiências concretas, vivenciadas no cotidiano e que apontavam para a união de explorados, mediada por correntes de solidariedade ativa, materializadas nas mutualidades sob a forma de ações conjuntas entre operários. Em outras palavras, postulavam o controle de todos os meios de produção, bem como a recusa do mercado e do Estado.

Ao observar e estudar essa força social em movimento, Pierre-Joseph Proudhon, que se intitulava “anarquista” desde 1840, percebe não apenas que ali existia uma grande novidade em relação aos papéis convencionalmente aceitos de Estado e mercado, como ainda encontrava-se explícita na prática mutualista algo de alcance sociológico de inegável importância. Em seus textos, ancorados nessa prática social, ele vai concluir que, além da recusa aqui descrita, o mutualismo desenvolvia-se alheio à suposta dicotomia entre indivíduo e sociedade, entre o privado e o público, entre interesses individuais e coletivos. Ele destaca que, no mutualismo, a ênfase não estava nem em um, nem em outro, mas sim na relação dinâmica entre os dois. Uma relação que, vista de fora do movimento, era mais bem representada nas realizações da classe trabalhadora, na sua capacidade criativa que, via de regra, era sistematicamente prejudicada, quando não sabotada, pelo mercado e o Estado.

Ficava assim o alerta de que, se tomados separadamente sem a devida percepção da relação que se estabelece entre ambos, indivíduo e sociedade, estes podiam ser utilizados em proveito do mercado e do Estado. Sendo, no primeiro caso, o indivíduo elevado à condição de soberano absoluto e, no segundo, a sociedade transformada em abstração e massa amorfa, podendo assim ser manipulada a bem dos governantes. Em qualquer dos casos, estava-se diante de uma grosseira distorção do que representavam as pessoas para as transformações que realmente importavam.

Em decorrência das suas conclusões preliminares, Proudhon irá perceber que o “valor trabalho” no mutualismo era, a um só tempo, patrimônio simbólico individual e coletivo, por ser fruto de uma “relação mútua” e a sua expressão concreta na lógica da superação da aparente contradição entre as duas condições sociológicas. Nesse sentido, o mutualismo, além de movimento social, configurava-se em crítica aos paradigmas de polarização típicos do século XIX, ainda que representasse um movimento tão ou mais antigo que o próprio campo socialista formalmente estabelecido.

No mundo contemporâneo, as questões levantadas pelos mutualistas do século XIX nos parecem ainda de grande utilidade prática. Em um contexto cada vez mais polarizado, o que trabalhadoras e trabalhadores pensaram a partir do ambiente laboral presta-se a uma reflexão desde a “terra de ninguém”, desde os espaços marginalizados pelo Estado e pelo mercado. Um pensamento potente que, por refletir a luta da classe trabalhadora contra a exploração, merece ser revisitado.

Na tentativa de atualizar o debate sobre as estratégias da resistência, prestando sempre homenagem aos que nos antecederam, mantendo assim explícito o “nexo” entre as experiências de luta, cabe aqui uma ponderação sobre o que se verifica nos dias que correm, principalmente no que diz respeito às muitas infiltrações do “pensamento dominante”, não necessariamente hegemônico, nas iniciativas da classe trabalhadora.

Entendemos que existe um tipo de ambiguidade bastante perigosa na dimensão teórica que majoritariamente inspira os entendimentos sobre os caminhos a serem seguidos pela classe trabalhadora, principalmente no setor público. Uma ambiguidade que pode fragilizar desde os movimentos grevistas até as muitas resistências que existem nos locais de trabalhos, protagonizadas estas por organismos autônomos criados ou não sob o patrocínio de sindicatos. Uma questão que reclama da parte das trabalhadoras e trabalhadores a maior atenção, uma vez que é da inteligibilidade (clareza) do que se quer que depende também a força com a qual poderemos contar para realizar a grande transformação. Nesse sentido, o nosso lastro histórico é de grande importância, tanto mais por demonstrar que a exploração e a injustiça, bem como as lutas advindas de tais fatos, não são de agora.

Um vocabulário cooptado?

Vamos discorrer aqui sobre uma questão das mais urgentes e que mergulha suas raízes no que acima procuramos desenvolver. Esta tem relação com os paradigmas de Estado, mercado e das estratégias que derivam disso, de sua conveniência ou não para a luta contra o capitalismo e as suas muitas formas de manutenção. Entendemos igualmente que hoje, mais até do que antes, o Estado encontra-se a serviço do capital, mesmo quando alega ser uma instância medidora para a garantia de direitos, por exemplo. Em relação a isso, podemos identificar aspectos dos mais evidentes para o debate, com destaque para a esfera laboral pública.

Assim, é preciso deixar claro que a ideia de “prestação de serviço” se encontra hoje intimamente relacionada com a esfera privada. Ela expressa a prevalência dos interesses do indivíduo (consumidor) sobre as necessidades do coletivo (da condição de cidadania). O servidor público dentro dessa lógica passa a ser considerado um agente do próprio mercado, funcionando em conformidade com as leis deste, tornando-se assim seu subordinado mais direto. Um fenômeno que se estende às instituições públicas que passam a servir de reforço a essa relação.

Não é preciso dizer que, dentro dessa lógica, mesmo antes da privatização mais formal, a jurídica, as instituições vão sendo preparadas para agirem em condições análogas às de uma empresa privada. Passam a mimetizar o funcionamento das entidades empresariais nas quais, em muito pouco tempo, deverão se transformar.

Vale acrescentar que o “produtivismo” e o incentivo ao “empreendedorismo” em instituições públicas já podem ser entendidos como os sintomas dessa avassaladora ofensiva do capital sobre o que se convenciona chamar de “direitos”. Um movimento que encontra o seu complemento na substituição de assistência (direito) pelo serviço (mercadoria). Uma realidade para a qual, aliás, as políticas de Estado contribuem sobremaneira.

É preciso sempre sublinhar que o capitalismo não é apenas uma estrutura econômica, ele é um sistema cuja complexidade alcança igualmente as esferas social, cultural e política. Nesse sentido, ele é também uma “força (i)moral” que a tudo subordina e determina, caso não encontre uma resistência minimamente organizada da classe explorada.

Diante de tal fato, há que se travar no interior do serviço público uma batalha importante, que vai muito além da definição mais ou menos precisa de um conceito sociológico, sendo assim necessário reiterar que o servidor deve ser, antes de tudo, um “agente público”, que age na esfera do direito e não do serviço. Atua na universalidade do que é comum, sem privilegiar qualquer classe em particular o que seria, em si, a corrupção da própria ideia de público. O serviço público, visto então como direito, é fator fundamental de resistência ao que de pior engendra o capitalismo no tecido social, pois, ao tratar os problemas como sendo comuns, tende a reforçar a ética coletiva. Uma atitude que, mesmo no caso da sua existência no interior do Estado capitalista, se desenvolve de forma subversiva para o bem do povo em geral.

Pelo exposto, o âmbito do público é o da mediação ou facilitação entre o povo e o direito. É nele que nascem os ciclos virtuosos de uma ação verdadeiramente popular. Tem assim uma natureza completamente diversa daquela que é possível verificar na chamada iniciativa privada, sendo inclusive, se bem utilizado estrategicamente, uma das principais ferramentas de transformação ainda que dentro da ordem. A exemplo do que foi um dia o sindicalismo, que reivindicava melhorias no interior do sistema que combatia, configurando-se em escola de resistência e espaço privilegiado da “ginástica revolucionária”, também o serviço público pode se converter em, simultaneamente, lugar de acúmulo político e identidade de classe.

À guisa de conclusão.

A presente reflexão tenta deixar evidente que, na sua trajetória histórica, tomando como partida o século XIX, para não recuarmos em demasia, Estado e mercado foram mais bem aliados que propriamente entes antagônicos. Ainda que como panaceias de blocos em confronto, terminaram por encontrar razões para uma colaboração nem sempre discreta. O liberalismo mostrou-se estatista em muitas de suas crises, assim como os estatistas buscaram o receituário liberal para garantir a governabilidade.

Diante de tudo isso, temos a força criativa da “terra de ninguém”, da classe trabalhadora sistematicamente marginalizada e perseguida por representar exatamente a única oportunidade de transformação radical, uma resistência permanente contra o mercado e o Estado. No nosso entendimento, seria ela, então, que tornou evidente a complementariedade entre indivíduo e sociedade, através do trabalho, numa relação virtuosa, a opção mais consequente frente aos dilemas da sociedade hoje.

Assim como os “fins já devem ser encontrados nos meios”, em potência, promessa ou esforço, é possível através dos meios, sempre com olhos fixos nos fins, gerar efeitos práticos que, ao mesmo tempo, questionem o poder e possibilitem a instituição de uma cultura política permanente na direção da superação do capitalismo.

Por tudo isso, reafirmar a consigna-fim “Socialismo ou Barbárie” nos parece insuficiente sem o seu fundamental complemento-meio “Autonomia ou Submissão”. É imprescindível articular fins e meios, na mesma perspectiva de que é preciso enfrentar a evidente aliança entre mercado e Estado.

Instituto de Estudos Libertários

Organização Popular – https://organizacaopopular.wordpress.com

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