Instituto de Estudos Libertários entrevista o editor e anarquista português António Cândido Franco

Abril de 2024

O grupo de A Ideia, no convívio da casa de José Manuel Leandro, em Almeirim, cerca de 1980. Imagem cedida generosamente pelo entrevistado.

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Quem é António Cândido Franco?

Alguém que procura desaprender muito do que lhe ensinaram, reconhecendo que isso é muito mais difícil do que parece. Mesmo sem querer, arrastamos e perpetuamos os vícios da nossa educação. Somos todos “colonizados” que se tornam “assimilados” e depois por sua vez “colonos”.

Quando se deu o seu encontro com o anarquismo?

Tinha 16 anos quando me veio parar às mãos a tradução portuguesa de Anarquismo – história das ideias e dos movimentos libertários de George Woodcock (Lisboa, Editora Meridiano, 1971). Pouco depois, no Verão de 1973, numa rua do centro de Amesterdão, acedi por acaso a uma edição inglesa dos escritos de Bakunine, On Anarchy (1971; comentários de Sam Dolgoff e prefácio de Paul Avrich), que ainda hoje tenho comigo e que ainda consulto.

Na sua trajetória libertária aproximou-se de alguma das correntes históricas do movimento?

A primeira corrente que conheci foi a fundacional – que vai da primeira Internacional operária à revolução espanhola de 1936. Mas desde cedo percebi – e a história de Woodcock é desse ponto de vista modelar – que a cultura libertária era múltipla e até contraditória e que isso em lugar de ser um entrave era uma extraordinária riqueza.

Nos fale dos primeiros tempos da revista A Ideia, nos idos de 1974.

O primeiro número da revista saiu em Paris, em Abril de 1974. Trata-se de um simples desdobrável, que se destinava a ser afixado na parede e distribuído mão a mão como panfleto. Começou a ser preparado no final do ano anterior e foi impresso numa tipografia de um companheiro espanhol no exílio. Tinha como director legal um companheiro de ideias francês, Germain Parès, mas quem a projectou, quem a concebeu e realizou, quem assinou o editorial – sem lá colocar porém o seu nome – e quem suportou os custos foi João Freire, um ex-oficial da armada portuguesa que, em 1968, em plena guerra colonial, desertara por razões de consciência, vindo a aderir em Paris, no exílio, no início da década de 70, por influência do meio espanhol libertário, também ele no exílio, às ideias libertárias. Mais novo 14 anos do que o João, só vim a conhecer a revista por volta de 1977, aderindo pouco depois ao grupo que se formara em torno do seu fundador.

Os editores de A Ideia conformaram em algum momento um “grupo de afinidades”? Nos fale um pouco da dinâmica que mobilizou essa bela experiência.

Embora muito pequeno, o primeiro número da revista trazia em bom destaque todo um conjunto de textos dedicado ao grupo de afinidade – um texto de Murray Bookchin (traduzido do livro Post-Scarcity anarchism, livro marcante para o fundador da revista), um breve trecho de Diego Abad de Santillán de 1971; uma resenha de Ricardo Sanz de 1966 e alguns curtos parágrafos extraídos da autobiografia de Miguel García (1973). Foi sobre a cultura do “grupo de afinidade” que a revista se criou e se desenvolveu. O grupo teve momentos altos, como a década de 80 do século passado, com actividades regulares e muito variadas, que iam da edição da revista e de livros até passeios e piqueniques nos arredores de Lisboa, e momentos mais fechados, com um menor número de participantes e muito menos actividades.

Em que aspectos A ideia se distingue de outras publicações libertárias do pós-25 de Abril?

Foi talvez a mais reflexiva e a mais teórica das publicações libertárias que surgiram em Portugal depois da queda do fascismo português, em 1974. Jornais como A Batalha, Voz Anarquista, A Merda, O Meridional, ou revistas como Acção Directa, privilegiaram sobretudo a intervenção imediata nas ruas, sem se preocuparem com a renovação teórica das ideias. Ao invés, talvez pelo contacto que tinha com as publicações libertárias italianas mais inovadoras da época, A Ideia teve desde o início consciência da necessidade de repensar o anarquismo do ponto de vista filosófico, sociológico, antropológico e até artístico e foi por aí que fez grande parte do seu caminho ao longo destes 50 anos.

Sobre os militantes que sobreviveram ao regime fascista, como eles se integraram ao projeto editorial de A Ideia?

Quase todos os sobreviventes da antiga Confederação Geral do Trabalho (CGT), de orientação anarco-sindicalista, que chegaram vivos à Revolução do Cravos de 1974 – Emídio Santana, José dos Reis Cerqueira, Artur Modesto, José Francisco, Acácio Tomás Aquino, Francisco Quintal, Moisés Silva Ramos, Lígia Oliveira – foram nossos colaboradores ou nossos sócios. Essa velha guarda integrou-se muito bem nas estruturas da cooperativa Sementeira e foi com ela que se pôde constituir na década de 80 do século passado, na Biblioteca Nacional de Lisboa, um centro documental, o Arquivo Histórico-Social (AHS), onde foi possível salvaguardar e colocar à leitura pública grande parte da documentação sindical da CGT e dos espólios dos seus militantes.

A revista teve “fases”? Quais seriam elas?

Distinguiria na revista três grandes fases, embora a terceira se possa subdividir em duas distintas. A primeira vai da fundação até 1980. É uma publicação artesanal, dactilografada, em caderno agrafado e que corresponde a um período de militância activa. Uma segunda, com um salto gráfico qualitativo, que se inicia em 1980 e que fecha em 1992 com a dissolução da cooperativa Sementeira. É com certeza o período marcante da vida da revista, com inúmeros debates e colóquios (um deles internacional em 1987), a constituição de uma cooperativa com algumas dezenas de sócios, a edição duma revista com muitas dezenas de páginas, um variadíssimo número de colaboradores e um grafismo apurado. É ainda um período marcado por um convívio quase permanente entre os membros do grupo e a edição de vários livros. Depois de um interregno entre 1992 e 2001, em que a publicação tirou apenas um número anual de reduzidas dimensões – em geral um único texto – que se destinava a assegurar a existência legal do título, a revista em papel reapareceu em 2001 (n.º 56) para uma segunda série e um terceiro período da sua vida que dura até hoje. Esta terceira fase pode dividir-se num primeiro subperíodo que vai de 2001 até 2012, em que a direcção legal da revista é assegurada pelo João Freire, e um segundo, que vai de 2013 até hoje e em que a direcção legal é assumida por mim. Em termos de ideário, a revista teve algumas oscilações, naturais num movimento tão poliédrico como o libertário, mas pode dizer-se que a clivagem mais acentuada se sente entre 1989 e 1992 no rescaldo do fim do chamado “socialismo real”. O debate foi então sobretudo protagonizado internamente pelo João Freire e pelo Miguel Serras Pereira, este mais interessado em afirmar as potencialidades revolucionárias do pensamento libertário e aquele mais descrente.

Que espírito anima A ideia nos seus 50 anos?

O mesmo que nos animou desde sempre – a de que não há verdades feitas nem super-homens e que as ideias libertárias num mundo cada vez mais caótico e autoritário precisam de estar vivas e de gente que as anime e dê a cara por elas.

Suas considerações finais.

Resta-me agradecer ao vosso colectivo, e em especial ao Alexandre Samis, o vosso convite e o vosso interesse pela revista, pelo seu itinerário e pela sua história.

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