MANIFESTO FEMINISMO FUNK por Inaê Diana Ashokasundari Shravya

“Admiro e respeito muito as pessoas que ainda contestam, que se insurgem, seja de que modo for, contra as restrições ao seu tesão de viver” Roberto Freire

É característica do funk a transa (e “transa” entendida tanto como uma conjugação do verbo transar, que diz respeito a foder, como uma verbalização do termo trans*)  de elementos que para o humanismo branco não podem estabelecer uma relação entre si que não seja a de oposição, disjunção, incompatibilidade. Borram-se as fronteiras entre o erotismo e a pornografia, o trabalho e o lazer, o sagrado e o profano, vício e virtude (aqui assumida na forma duma vida saudável), entre mente e corpo, e por aí vai, alcançando a (im)possibilidade de se pensar com outras partes do corpo. O funk se realiza em coletividade, em comunhão. O baile é o espaço conceitual da comunalidade, dos bons encontros. Andar é andar em bonde.

Sua intensidade é irredutível ao confinamento dos condomínios, dentro dos quais a bossa nova realiza a sua função de carcereiro que ordena silêncio. A sexualidade não assume uma posição romântica – pomposa, cheia de frescurinha – e nem mesmo recorre a eufemismos. A preocupação com a consequência se sobressai à preocupação com a ação que a antecede: a finalidade das práticas é o gozo, a satisfação, o hedon. Talvez por isso provoque uma certa repulsa da parte daqueles que, ou por aderirem a um humanismo branco ou por aderirem a um ascetismo cristãmente motivado, veem no funk exclusivamente elementos depreciativos, apologia a práticas consideradas criminosas como o tráfico e o estupro. A conexão necessária que se costuma estabelecer, da parte desses grupos, entre termos como “novinha” e “criança” não possui sustentação senão nas suas cabeças, as quais parecem povoadas por fantasmas de senhores colonialistas, que apregoam o tempo inteiro que funkeiros são os novos predadores sexuais, dispostos a violentarem jovens inocentes. Uma associação, cabe dizer, calcada em racismo. Cantores brancos do rock não costumam ser associados com predadores sexuais e as groupies – que muitas das vezes eram menores de idade – passam despercebidas.

Há mais proximidade, esteticamente falando, entre David Bowie e o funk carioca do que entre ele e o rock de mulheres assassinadas e violentadas como o de Axl Rose. As mulheres dentro do funk costumam assumir posturas mais assertivas, menos complacentes, embora hajam mulheres complacentes e submissas a seus companheiros. Mas o que dá o tom antimasculinista ao funk -e, por que não, feminista – são cantoras como mc Marcelly, Tati QuebraBarraco, Lacraia, Valesca Popozuda, mc Deize Tigrona, mc Kátia, mc Trans, mc Jessy, Mulher Pepita, mc Carol, e um punhado de outras tantas cantoras mais que não estão a fim de submissão alguma. Enquanto feministas brancas de classe média vociferam ‘’meu corpo, minhas regras”, funkeiras assumem materialmente esse enunciado e são criticadas exatamente por conta disso, por “não entenderem o que tal enunciado realmente significa” – Spivaks da Tijuca sobre as subalternas da Chatuba de Mesquita; Valesca discorda: “Sou dessas que fala o que pensa bem na tua cara / Sou dessas que nunca levou desaforo pra casa / Sou dessas que se for preciso até falo mais alto / Sou dessas que roda a baiana sem descer do salto”. Tá pra nascer homem (ou qualquer tipo de vanguarda androcêntrica ou delírio messiânico) que lhes mande, se é que vai nascer. O papo reto desconhece radicalmente a dinâmica da filiação. É a arma da guerreira, cujo corpo se expõe ao risco. Sua alegria e seu papo reto são as causas do ressentimento das spivaks recalcadas da Tijuca, que, embora falem efusivamente sobre os bailes funks e as submissões das funkeiras, só conseguem ambos pela intermediação do monitor – do computador, da televisão, do celular -, desconhecendo por completo a realidade. Afinal de contas, mediúnicas duma razão universal, por que se preocupariam com a realidade? O mais próximo que chegaram da realidade dum baile foi pela emprega doméstica, mãe de/ ou frequentadora de baile, mas provavelmente nem fazem ideia, pois a empregada é, para essas dondocas, parte da paisagem burguesa.“Novinha”, bem como “novinho”, desmantela a conexão necessária estabelecida pelo humanismo branco entre idade e tornar-se adulto. A novinha e o novinho podem muito bem ter mais de 25 anos, bem como as feministas brancas de classe média supostamente materialistas preferem se ater a um essencialismo etimológico. Este tipo de narrativa, a do desmantelamento da associação entre idade e tornar-se adulto, parece encontrar ressonância na eterna puberdade que a trans*generidade propicia, o que talvez indique que há muito mais proximidade entre esses grupos do que se supõe. Em termos de marginalidade, compartilhando da posição, ou mesmo a prática mágica que torna o som duma garrafa de coca-cola numa batida de 150 BPM, manipulação de corpos, somatomatemática (quadradinho de oito). Talvez fosse o caso de pensarmos – lembrando que o pensar é uma das tantas potências do corpo, pensa-se com o corpo, no corpo – um feminismo funk, para o qual dançar seja imprescindível à revolução.

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