Instituto de Estudos Libertários entrevista o editor e anarquista português Mário Rui Pinto

Abril de 2024

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Quem é Mário Rui Pinto?

Sou uma pessoa que, desde há muitos anos, tenta viver a Vida em função das ideias anarquistas, o que não é fácil. Normalmente, os e as anarquistas vivem permanentemente mergulhadas numa sociedade com a qual não concordam e que maioritariamente não gosta de nós. Estamos quase todos os dias em contacto com atitudes e pessoas autoritárias, dominadoras, que gostam da hierarquia, etc., e com isto não é fácil de conviver. Felizmente, que há lugares onde se pode viver em anarquia, mas não são muitos. Mais coisas que me definam: pai de 3 filhos e uma filha, ex-economista, mas sobretudo anarco-viajante, sempre em busca da Utopia e da Revolução.

Quando e como conheceu o anarquismo?

Costumo dizer que foram as ideias anarquistas que me descobriram. Por volta dos 15 anos, ainda em ditadura, tornei-me antifascista. Mas também não gostava do discurso das organizações juvenis do Partido Comunista ou dos diversos grupúsculos marxistas-leninistas e maoistas que já funcionavam nos liceus (escolas secundárias). Achava o discurso muito dogmático, muito autoritário. Fazia a mim próprio perguntas que já iam no sentido de uma sociedade sem dominação, mas não conhecia sequer a palavra anarquia. Um dia, numa livraria de Lisboa, descobri o livro “O Anarquismo” do George Woodcock. Anarquismo? O que é isto? Peguei nele, comecei logo ali a lê-lo, e pronto, é isto! Levei-o para casa e tornou-se um dos meus “livros de cabeceira”, ao qual se juntou um pouco mais tarde “Os Despojados” (“Os Despossuídos”) da Ursula K. Le Guin. Depois comecei a procurar outros e outras anarquistas, o que acabou por acontecer depois da queda do fascismo em 1974. A partir daí, nunca mais parei.

Você tem afinidades maiores com alguma corrente histórica do anarquismo?

Não tenho. Costumo dizer que sou anarquista sem adjectivo. As correntes históricas do anarquismo têm de ser conhecidas, claro, mas são respostas que sobretudo as classes trabalhadoras europeias arranjaram para combater o capitalismo, o Estado e a religião há mais de cem anos. A sociedade e o capitalismo mudaram muito. Há livros clássicos fundadores destas correntes que estão datados. Têm de ser lidos, mas sobretudo têm de ser actualizados. E novos clássicos já foram escritos. Para um anarquista, é impossível não gostar de Bakunin, Kropotkin, Reclus, Voltairine de Cleyre, Malatesta, Louise Michel, Emma Goldman, Marius Jacob, Oiticica, Neno Vasco, Severino Di Giovanni, entre tantos e tantas outras, mas o seu pensamento e a sua acção têm de ser actualizados. E sobretudo novas lutas surgiram, para as quais o anarquismo clássico não tem resposta precisamente porque são novas. Temos de ser nós a criar estas respostas. Entre estas novas lutas, eu diria que a luta pela posse do território que habitamos é talvez a mais importante. Podermos habitar um território livre de capitalismo e dominação. Daí eu ter muita afinidade com o anarco-indigenismo, que considero a corrente do futuro do anarquismo.

Em quais projetos esteve envolvido nos últimos anos em Portugal?

Considerando os últimos sete anos, os maiores projectos são o da editora Barricada de Livros e o regresso ao jornal A Batalha. Mas há sempre manifestações, okupações, feiras de livros, e outras actividades mais ou menos regulares. Antes, foram muitos projectos: o início no jornal A Batalha, o grupo de teatro Mandrágora, a revista Utopia, a BOESG e o novo espaço Disgraça foram os mais importantes.

Como está essa nova fase de A Batalha, o jornal da CGT, que apareceu em Portugal nos idos de 1919?

O jornal renovou-se bastante nos últimos anos, mas, principalmente, saiu do isolamento em que foi progressivamente caindo por opção dos anteriores responsáveis pela sua edição. Abriu-se de novo ao movimento anarquista, a outras colaborações, aos novos temas. Compas jovens, uma nova imagem, aumento sistemático do número de assinantes e das vendas.

Nos fale da editora Barricada de Livros.

A editora Barricada de Livros é um projecto individual e colectivo. É individual porque corresponde à concretização de um velho sonho meu de ter uma editora assumidamente anarquista com actividade regular. Este sonho foi concretizado em 2017, com a edição do primeiro livro “Preferi roubar a ser roubado!”, que se tornou um sucesso (contra todas as previsões). E é colectivo porque a edição de cada livro resulta do trabalho colectivo de um grupo de compas que se juntam especificamente para aquela edição. Todo o trabalho de tradução, revisão, grafismo, escrita é feito de forma colectiva. Um texto é traduzido por uma pessoa, mas depois a tradução é revista por todas as outras pessoas envolvidas na edição. Normalmente, sou eu que escrevo o Prefácio, a Biografia do autor ou autora e a pesquisa histórica (quando há), mas depois tudo isto é revisto, comentado, criticado, acrescentado, por todas as outras pessoas envolvidas. Daqui resulta que o produto final é um trabalho colectivo. O objectivo é editar livros que divulguem as ideias anarquistas para aquelas pessoas que não sabem bem o que é a anarquia ou os anarquismos e que estão à procura do seu caminho político. Também é nosso objectivo divulgar algum ou alguma anarquista que, por diversos motivos, tenha caído no esquecimento e não esteja (ou esteja pouco) editada em português. E tentamos fazer isto através de livros que sejam o mais bonitos e baratos possíveis. Consideramos que a estética e o grafismo são importantes para atrair mais pessoas interessadas. Passados 7 anos, já se editaram 15 livros e continua…

Que outras editoras libertárias existem hoje em Portugal?

Felizmente existem outras editoras que assumem a divulgação da História e das ideias anarquistas como objectivo: A Batalha e Letra Livre (que também é livraria), são as mais activas. Existem mais duas editoras – Flauta de Luz (que também é uma revista) e Barco Bêbado -, mas estas já não editam apenas anarquismo, também editam ficção e ensaio (aquilo a que eu chamo literatura pura), sobretudo a Barco Bêbado que edita a um ritmo impressionante uma panóplia muito alargada de escritores e escritoras. Importa mencionar a revista A Ideia e o jornal Mapa que também são editados regularmente. Finalmente, há um punhado de compas que editam isoladamente, sobretudo poesia e fanzines. Pode-se dizer que, a nível editorial, o movimento anarquista português não tem de se envergonhar com qualquer comparação.

Como se articula a editora com outros espaços libertários no Brasil?

Os livros da Barricada de Livros são vendidos no Brasil através de diversos colectivos, mas sobretudo da livraria online do Centro de Cultura Social de São Paulo. Desde 2017 que participo na feira do livro anarquista de São Paulo que, para mim, é a maior feira anarquista das que eu conheço (e já conheço algumas). Também já participei na feira do livro anarquista de Porto Alegre. Quando vou ao Brasil levo uma mala com 23 kgs. de livros que são vendidos nas feiras ou que ficam aí para serem vendidos ao longo do ano. Depois da feira, viajo pelo Brasil e vou conhecendo espaços e indivíduos, que me convidam para apresentar livros ou para animar conversas. Para além do CCS de SP e do IEL, os espaços que conheço há mais anos são a biblioteca Terra Livre, o NELCA, a biblioteca/espaço em Salvador (a antiga Maloca) e a Casa da Soma. Mas, durante estes 7 anos que a editora existe, tenho conhecido espaços maravilhosos de divulgação das Ideias como a Comuna Pachamama, a Kasa Invisível, a Chácara Semente Negra, a feira de Porto Alegre e, o ano passado, o Centro de Cultura Libertária da Amazónia, em Belém. Para além de inúmeros e inúmeras militantes que, apesar de não terem espaço próprio, são protagonistas individual ou colectivamente de diversas actividades em prol do anarquismo. Costumo dizer que no Brasil e em Itália me sinto em casa.

É preciso ler os clássicos do anarquismo? Eles ainda fazem sentido?

Sim, claro. Já falei um pouco sobre isto mais acima. É fundamental ler os clássicos para se perceber como tudo começou e para onde queremos ir. Mas alguns destes clássicos estão datados, têm de ser actualizados. Em cem anos surgiram novas pautas e novas lutas, que têm de ser pensadas com uma visão anárquica. É uma das inúmeras vantagens do anarquismo em relação ao marxismo. O anarquismo não está dependente dos escritos de uma só pessoa que existiu há mais de cem anos. O anarquismo foi fundado por inúmeros homens e mulheres que, a partir de algumas premissas comuns, foram elaborando diversas visões. E tem de continuar assim, em constante evolução. Como escreve o Tomás Ibáñez, “as águas dos anarquismos têm de ser agitadas para que nunca adormeçam num sonho complacente e não deixem de ser turbulentas”.

Faça um breve balanço do cenário anarquista em Portugal hoje.

Já falei acima do panorama editorial. Diria que o anarquismo em Portugal nunca conseguiu recuperar dos 48 anos de fascismo e do papel de apagamento da história que tem tido o Partido Comunista. Não existe uma organização anarquista formal (a experiência histórica após o 25 Abril 1974 deixou muitas marcas negativas), mas algumas estarão em embrião de novo. Tudo se organiza através de trabalho colectivo: feiras do livro, manifestações, okupações e outras actividades. Existem jornais, revistas e editoras. Existem espaços específicos em Lisboa e no Porto. Existe uma actividade regular em muitos pontos do país, mas sobretudo no litoral. Diria que, neste momento, o movimento anarquista português é relativamente jovem, pequeno, mas fazemos exactamente as mesmas actividades que os movimentos maiores como o espanhol ou o italiano. Só que fazemos à nossa dimensão.

E sobre a política em geral, o que é relevante assinalar?

O mais importante de assinalar é a chegada da extrema-direita à área do poder com a eleição de 50 deputados pelo partido Chega. Acabou assim a imunidade portuguesa à ascensão internacional da extrema-direita. Esta situação é explicada pelo desencanto do cidadão comum em relação à política, aos políticos em geral e ao sistema judicial, moroso e caro. Portugal e Espanha são dos raros países europeus onde ainda existem partidos políticos ditos de esquerda, mas o que se verifica é que estes quando chegam ao poder, mesmo com maioria absoluta, não são capazes de resolver problemas básicos da população (melhor ensino, melhores transportes, melhor saúde, melhores salários, mais habitação acessível) e governam enredados nas mesmas teias de interesses e de corrupção dos partidos de direita. Nunca foram capazes de pôr em prática políticas verdadeiramente de esquerda que resolvessem os problemas das pessoas.

Suas considerações finais.

Longa vida à anarquia e aos anarquismos! Obrigado!

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