“É necessário dissecar este cadáver”: o caso do primeiro brasileiro expulso do Partido Comunista do Brasil.

Hamilton Santos1

Octavio Brandão, Bernardo Canellas e Astrojildo Pereira, em 1919.
Coleção particular Dionysia Brandão Rocha

Durante a Primeira República o movimento operário brasileiro se desenvolveu e se fortaleceu. A partir da primeira década do século XX os setores mais combativos do proletariado se organizaram através do sindicalismo revolucionário, de inspiração libertária2. O sindicalismo revolucionário foi o mais combativo paradigma sindical, que organizou e protagonizou relevantes lutas por direitos trabalhistas e melhorias nas condições de sobrevivência dos trabalhadores. Operários anarquistas realizaram um grande esforço para construir uma agenda contra-hegemônica, uma visão de mundo própria, que lhes permitia entender a exploração burguesa e desenvolver a ideia de superação do modo de produção vigente. A experiência do movimento anarquista no Brasil foi intensa, forte e despertou uma brutal e constante repressão da classe dominante.

Em 1906, aconteceu o Primeiro Congresso Operário Brasileiro que organizou a Confederação Operária Brasileira em 1908. Essa organização operária tinha o objetivo de unificar as lutas dos sindicatos revolucionários sob a perspectiva anarquista. A influência da ideologia ácrata sobre os setores mais combativos do proletariado brasileiro ganhou grande importância em 1906 e durou até o fim da Primeira República (PEREIRA, 2012: 38).

Em 1913, aconteceu o Segundo Congresso Operário Brasileiro. Também foi organizado e influenciado pelo sindicalismo revolucionário. Os anarquistas estiveram na liderança dos dois primeiros congressos operários. Tal fato nos permite afirmar a hegemonia do sindicalismo revolucionário no movimento operário da Primeira República. A revolução bolchevique de 1917 influenciou os movimentos operários em diversas partes do mundo. A análise da influência do advento bolchevique nos meios operários brasileiros, organizados pelos anarquistas, socialistas e ‘sindicatos amarelos’, se faz necessária, pois o evento revolucionário alterou o desenvolvimento e trajetória das lutas sociais no Brasil e no mundo. Inicialmente, a Revolução Russa despertou euforia nos grupos libertários que militavam no movimento operário brasileiro. Muitos acreditavam que o movimento revolucionário russo era uma revolução anarquista que findou a exploração capitalista na Rússia. (BANDEIRA, 2017: 345).

Em 1918, aconteceu a insurreição anarquista no Rio de Janeiro. Anarquistas influenciados pela Revolução Russa tentaram acabar com o capitalismo no Brasil, através de uma revolução na Capital da República. Foi notória a influência da revolução bolchevique. (ADDOR, 2015: 154).

No ano de 1919, em meio a esse agitado contexto operário, militantes anarquistas decidiram criar uma entidade libertária, intitulada Partido Comunista do Brasil3. Não era uma organização operária marxista. O termo “comunista” não era sinônimo de marxismo no Brasil.4 A gênese desse primeiro “partido comunista anarquista” criado em 1919, por Astrojildo Pereira, José Oiticica e mais 20 militantes anarquistas de todo o Brasil, demonstra a dificuldade dos operários brasileiros em discernir a diferença ideológica entre o anarquismo e o marxismo que havia influenciado os trabalhadores russos.

A organização anarquista intitulada Partido Comunista do Brasil em 1919, adotou o periódico Spártacus como seu instrumento de informação. A criação da referida associação operária também pode ser analisada como um desdobramento da insurreição de 1918. O “partido anarquista” foi brutalmente reprimido pelas forças estatais da Capital. A fundação de uma organização libertária intitulada de “comunista”, influenciada pela Revolução Russa e pelo insucesso da insurreição anarquista de 1918 é um importante indício de que o surgimento do Partido Comunista do Brasil em 1922 foi um desdobramento do sindicalismo revolucionário, de inspiração anarquista.

Alguns contingentes de militantes anarquistas impactados pelo êxito da Revolução Russa, se propuseram a criar o primeiro partido marxista do Brasil em 1922. Criaram grupos comunistas nas principais cidades brasileiras e em seguida o Partido Comunista do Brasil (P.C.B.) foi fundado em 25 março, na cidade de Niterói. Seus fundadores, neófitos do bolchevismo, se tornaram os primeiros dirigentes do Partido Comunista do Brasil. Ainda em janeiro de 1922, foi publicado o primeiro número da revista Movimento Communista. O objetivo desses incipientes grupos bolchevistas era apresentar a revista como o instrumento de informação e propagação das ideias marxistas no Brasil. Em 1924 o partido foi aceito pela Internacional Comunista e publicou integralmente o Manifesto do partido comunista na cidade de Porto Alegre. Não obstante, a maioria dos fundadores do partido era composta por antigos militantes anarquistas, que propuseram repetir no Brasil o processo histórico que culminou na vitoriosa revolução bolchevique na Rússia em 1917. As limitações ideológicas desses primeiros marxistas brasileiros já foram amplamente documentadas. (KONDER:1988).

A fundação de um partido marxista no Brasil aconteceu somente em 1922. A criação de um partido marxista foi um indício de transformações estruturais e ideológicas em um heterogêneo movimento operário brasileiro. Outro indício que nos permite problematizar a formação do Partido Comunista do Brasil foi a trajetória de Antonio Bernardo Canellas. Nascido em Niterói, no ano de 1898, se tornou operário do ramo da tipografia e um ativo militante sindical anarquista. Foi o segundo maior editor de jornais operários no Brasil e ajudou a organizar sindicatos anarquistas no Nordeste. Influenciado pela Revolução Russa, se aproximou do Partido Comunista do Brasil logo após a sua fundação em 1922. (SALLES, 2005: 67).

Canellas não participou da fundação do partido, pois se encontrava em viagem na Europa em 1922. Mesmo distante foi escolhido para compor a direção partidária e ficou responsável pelo setor editorial do PCB. (LACERDA, 2019: 61).

Por estar no Velho Continente, foi escolhido para representar o PCB no IV Congresso da Internacional Comunista a se realizar na Rússia, no mesmo ano de fundação do partido. Sua missão era que o PCB fosse reconhecido como um partido genuinamente marxista pela Internacional Comunista. Canellas foi o primeiro brasileiro a conhecer a Rússia bolchevique e também o primeiro militante expulso do PCB devido à sua postura enquanto delegado no IV Congresso da Internacional Comunista. Demonstremos que seu comportamento foi influenciado pela sua experiência e trajetória anarquistas. Inconscientemente não se portou conforme um delegado de um partido marxista periférico, que pleiteava a aceitação e legitimação da referida organização internacional. A polêmica postura de Canellas no congresso afetou a decisão inicial da Internacional Comunista em não aceitar o PCB como membro efetivo e um partido realmente marxista. A Internacional Comunista afirmou que o incipiente partido era uma organização com vícios do seu passado libertário. (SALLES, 2005: 113-130).

A experiência sindical que esses fundadores possuíam era oriunda do sindicalismo revolucionário. No entanto, os fundadores do PCB jamais assumiram a relevância de tal experiência, pois precisavam refuta-la. Precisavam apresentar a superioridade do marxismo perante o anarquismo. A própria Internacional Comunista acusou o passado anarquista do PCB no IV Congresso de 1922.

Mesmo após sua expulsão do PCB, Canellas continuou atuando no movimento operário e no que sabia de melhor: imprensa operária. Se organizou na Associação Gráfica do Rio de Janeiro, onde assumiu o cargo de cobrador e agente de propaganda da associação. Canellas e José Oiticica decidiram criar um jornal com objetivo de noticiar os desdobramentos da revolta em São Paulo, intitulado com a data das duas revoltas tenentistas: 5 de Julho. Ambos passaram a editar o jornal, com direção de Antonio Bernardo Canellas O jornal era clandestino e se apresentava como “porta-voz da revolução brasileira”. Para despistar as autoridades, os editores apresentava Epaminondas Gordo como editor do jornal e o Coronel Libanio como gerente. Inicialmente, o jornal era publicado apenas pelo número e sem a data. Abaixo do nome, seguia a frase “Jornal de acordo com a liberdade e contra a lei de imprensa”.

O periódico 5 de Julho deixou de circular no final da década de 1920 e voltou às atividades em 1930. A tipografia foi transferida para Niterói, na rua Visconde de Rio Branco, 385, 1° andar. Curiosamente Canellas retornou à sua terra natal, depois de rodar o mundo. Atuou no Nordeste, passou pela capital da República, por países da Europa. Conheceu as principais lideranças operárias mundiais. Foi um dos maiores editores de jornais anarquistas, o primeiro brasileiro a conhecer a Rússia bolchevique. Participou de um dos congressos mundiais da Internacional Comunista. Foi noticiado pela mídia burguesa como uma das principais lideranças sindicais, se tornou um dos militantes proletários mais visados pelas autoridades, encarcerado inúmeras vezes. Foi o primeiro militante expulso do Partido Comunista do Brasil, publicou o livro Questões profissionais da indústria do livro, contribuiu com a seção operária de A Pátria, atuou na Associação Gráfica do Rio de Janeiro, editou o relevante jornal 5 de Julho, etc.

Aos 34 anos de idade, Canellas pode ser considerado um dos militantes e pensadores mais originais da esquerda revolucionária brasileira da Primeira República. Sua militância e o periódico 5 de Julho continuavam fiéis aos ideais de sua juventude. Após 1932, as informações e registros sobre Canellas desaparecem. Pode ser que apareçam novas informações, documentos ou depoimentos de conhecidos, amigos e parentes para completar as lacunas de sua vida. (SALLES, 2005: 193-196).

O processo de expulsão de Antonio Bernardo Canellas do Partido Comunista do Brasil resultou em dois relevantes documentos que nos ajudam a compreender a organização do proletariado brasileiro na última década da Primeira República. São eles: Relatório da delegacia à Rússia (1923) de Antonio Bernardo Canellas e O processo de um traidor: o caso do ex-comunista A. B. Canellas (1924) do P.C.B. O primeiro é um relatório do primeiro delegado brasileiro presente em um congresso da Internacional Comunista. O segundo é a resposta severa do Partido Comunista do Brasil contra o relatório e o seu autor. São fontes primárias de difícil acesso e que o Instituto de Estudos Libertários está disponibilizando-as ao grande público.

Referências Bibliográficas

ADDOR, Carlos Augusto. A insurreição anarquista no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Rizoma Editorial, 2015.

BANDEIRA, Moniz. O ano vermelho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.

CANELLAS, Antonio Bernardo. Relatório da delegacia à Rússia como representante do Partido Comunista do Brasil, acompanhado de uma exposição dos motivos que determinaram a minha demissão do C.C.E. do Partido. Rio de Janeiro: [s.n.], 1923.

KONDER. Leandro. A derrota da dialética. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1988.

LACERDA, Felipe Castilho de. Octávio Brandão e as matrizes intelectuais do marxismo no Brasil. São Paulo: Ateliê Editorial, 2019.

PEREIRA, Astrojildo. Formação do PCB. 3ª Ed., São Paulo: Anita Garibaldi, 2012.

SALLES, Iza. Um cadáver ao sol. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005.

PARTIDO COMUNISTA (S.B.I.C.). O processo de um traidor (O caso do ex-communista A. B. Canellas). Rio de Janeiro: Typographia Lincoln, 1924.

Notas

1 Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em História Comparada da UFRJ, membro pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre o Anarquismo e Cultura Libertária (NEPAN) e do Grupo de Estudos do Anarquismo (GEA).

2 O termo libertário será utilizado para se referir às diversas correntes políticas anarquistas e aos socialistas antiautoritários que se organizavam politicamente através do sindicalismo revolucionário na Primeira República.

3 Ao nos referirmos à organização anarquista intitulada Partido Comunista do Brasil, utilizaremos o seu ano de fundação (1919) para evitar confusões com o partido marxista homônimo, fundado em 1922.

4 Nesse período era utilizado o termo “maximalismo” no Brasil, como alusão ao bolchevismo. Era uma terminologia política referente ao contexto russo-soviético, utilizada nos meios sindicais brasileiros.

DOCUMENTOS

Relatório da delegacia à Rússia (arquivo em PDF)

O processo de um traidor (arquivo em PDF)

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