Instituto de Estudos Libertários entrevista Renato Canova

Dezembro de 2023

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Quem é Renato Canova?

Filho de Virgínia e Iedo, ambos trabalhadores no setor do comércio, já aposentados. Moro desde sempre em um município localizado na região oeste de São Paulo. Estudante de escola pública na década de 1990, sou cria deste combo que atravessa do lixo ao luxo (a minha rasa referência que tenho de luxo). Atuei por muitos anos na cena cultural da cidade onde moro como DJ de Jazz-Rap, além de rasurar alguns discos em algumas casas noturnas de São Paulo. Desde 2008, sou professor bacharel desempregado e, por muito tempo venho no corre fazendo bicos. Sou um trabalhador freela (nome técnico: precarizado), que os liberais em conserva chamam de empreendedor, microempresário (risos).

Como e quando conheceu o anarquismo?

Meu primeiro contato se deu quando eu ia visitar meus avós maternos, cuja casa se localizava em um bairro operário da cidade. Meu falecido avô materno Anchise (Anschizie) guardava jornais e livros anarquistas em um velho baú, que ficava em um biombo de madeira, junto às ferramentas que tinha. Ainda criança, com meus 10, 11 anos, ia escondido no biombo para brincar com as ferramentas, junto aos bonecos que tinha e, vez por outra, lia os velhos jornais e livros que ele guardava. Tudo isso sem ninguém saber. O tal biombo era um lugar proibido da casa, onde eu e meus primos não podíamos ir. Posso dizer que meu primeiro contato com o anarquismo se deu ainda em minha fase lúdica, pois nem sabia do que se tratava, e tentávamos ler aqueles nomes russos e alemães impronunciáveis, que eu e meus primos ríamos a cada tentativa e erro, dada a quantidade de consoantes. Aos 16 anos de idade e precocemente adotado pela cena hip-hop / punk, tive acesso aos primeiros zines, onde minha memória do que vi já no extinto biombo de meu avô veio à tona. A partir de então, participei dos extintos coletivos pela libertação de Mumia Abu-Jamal e Leonard Peltier, além de grupos de estudos de formação política de base.

Você se identifica mais especificamente com alguma corrente histórica do anarquismo?

Não tenho um autor(a) ou movimento político-histórico em especial. Como já trampava, de forma itinerante, por alguns sebos em São Paulo, tive a chance de acessar muita coisa ainda na adolescência, o que me fez tentar buscar por livros que pertenciam ao meu avô, que foram vendidos por minha família para alguns sebos. Assim foi meu primeiro contato, como a maioria de nós, caíram em minhas mãos: Proudhon, Bakunin, Kropotkin e Malatesta. Isso mudou após meu ingresso acidental na faculdade de sociologia e meus primeiros passos à sociologia da arte, quando me deparei com ‘anartistas’ pouquíssimos(as) ou nada conhecidos(as) por aqui. São artistas e autores(as) que, mesmo entre poucas enciclopédias de história da arte sérias, são reverenciados(as), mas dado de muitos(as) serem anarquistas, são apagados. Me refiro à cena, ou se preferir, ao movimento anti-arte Dada (Dadaísmo). Então, respondendo a sua pergunta: hoje, me identifico com meu trabalho de pesquisa quase vocacional que está em mergulhar no movimento cuja experiência destrutivo-criativa foi a mais radical da história e o anarquismo teve um papel vital em tais processos. Para possíveis interessados(as) que quiserem saber mais sobre, basta se encaminharem para o Instagram: @palentete.

Como se caracteriza a sua militância?

Dada as minhas limitadas condições matérias, desempregado / precarizado, isso interfere de forma brutal na minha atuação. A começar por me deslocar para os locais de encontro ou mesmo compor um caixa para auxiliar os movimentos dos quais participo com a ajuda de custos básicos para a sua manutenção: seja dos próprios coletivos, agrupamentos ou associações, seja na manutenção dos espaços físicos, ou mesmo para execução de ações para angariar fundos. Como uso transporte público para chegar nos locais, ganhando pouco, pouco se pode fazer. É aquilo, na tirania do capital, a tal liberdade tão ovacionada pelos liberais em conserva se exerce a partir da posição em que você se encontra na cadeia produtiva, logo o exercício da liberdade está absolutamente vinculado à quantidade de seu salário. Isto posto, posso afirmar que minha condição material atual me limita, e muito, na militância.

Como você definiria o campo libertário hoje em São Paulo?

Como passei a frequentar o movimento anarquista desde meados da década de 1990, logo fará 40 anos, o movimento anarquista paulistano é como ondas. Há períodos de intensa atividade e criatividade militante. Assim como há períodos em que se suspeita de seu quase desaparecimento. Esse aspecto, que não sei se ocorre em outras regiões do país ou no mundo, evidencia um ponto que creio ser um problema medular em todo o movimento anarquista paulistano. Esta marca de volatilidade e instabilidade de atuação se dá por um temor ou até mesmo um sentimento de aversão a uma organização mais consolidada. Alguns(mas) podem até constatar que tal caráter instável do anarquismo, enquanto movimento social, é parte de sua característica inventiva; alguns(mas) observam tal comportamento como um certo charme. Particularmente, eu vejo o contrário. De fato, nós, anarquistas, temos de lidar com um dilema que nos persegue desde o século XIX: uma organização permanente de constante atuação social fará aumentar seu contingente. Aumentando seu contingente, maior sua visibilidade. Logo, isso nos torna um alvo mais fácil aos agentes do estado e do capital. Assim, muitos dos movimentos e associações anarquistas atuam em grupelhos, em pequenos grupos, tática esta que oferece, simultaneamente, uma vantagem: de atuar abaixo dos radares, dificultando a patrulha e a opressão do estado-capital, mas a imensa desvantagem de: ao se atuar em pequenos grupos, há menos impacto e alcance no social, por conseguinte, torna-se mais frágil e mais fácil sua dissolução. Porém, mesmo frente as tamanhas adversidades alguns coletivos, como a O.S.L. (Organização Socialista Libertária), Biblioteca Terra Livre e mesmo o C.C.S. vêm se mantendo fortes em permanecerem ativos e atuantes.

Quais espaços ou grupos você frequentou nos últimos tempos?

Como escrevi anteriormente, minhas condições materiais me impossibilitam de estar mais presente nos movimentos sociais de cunho anarquista, mas sempre que possível vou ao C.C.S. participar das atividades, de rodas de conversa e debates e processos formativos. Mas confesso que hoje pretendo me aproximar da O.S.L. para conhecer seus trabalhos e, quem sabe, me fazer mais presente. Se meu parco orçamento assim me permitir (risos).

Tem preferência por algum clássico do anarquismo?

A clássica obra “Deus e o Estado” de Milkhail Bakunin é fundamental. Quanto mais na atual conjuntura em que estamos submersos. Ao vermos que forças da nova fé/fraude neopentecostal se assume enquanto um projeto político (o que é positivo, pois diz a que veio e quais suas reais pretensões, sem mais dissimulação) em fazer do brasil um evangelistão. Neste momento, a obra de Bakunin é um holofote de esclarecimento para todo(a) aquele(a) que se pretende munir de um crítico arsenal reflexivo.

Como anarquista, qual é a sua visão da atual conjuntura política?

Se me permitir, vou de citação de um romancista e musicólogo francês, Romaind Rolland, que o comunista italiano Antônio Gramsci reutilizou muito bem, invertendo as inferências: como nascido e crescido aqui, o “pessimismo da razão e o otimismo da vontade” é uma espécie de norte axiomático que oferece uma frágil estabilidade a minha saúde mental. O Brasil é uma carnificina-carnavalesca onde tal sentença cabe como uma luva: o pessimismo da razão ao vivenciarmos os atrozes acontecimentos cotidianos promovidos, tanto pelas polícias quanto pelos agentes econômicos em suas jogatinas no cassino das bolsas de valores e do quanto isso impacta a vida em cada viela, quebrada, quilombo, aldeia, cortiço, biombos de trabalho, em que todos nós estamos submersos. Dadas tais condições materiais, exige de nós um otimismo da vontade em mudar radicalmente a conjuntura atual e é aí neste momento que me disponho por responder à questão seguinte.

Existe esperança para realização da revolução libertária nos tempos em que vivemos?

Essa pergunta é cara para todos(as) nós e sim, mesmo em um extenso tratado de filosofia política, não daria conta desta questão. Mas enfim, lançarei mão de duas parcas impressões, baseadas nas condições materiais vigentes. E aqui cabe deixar nítido um ponto nuclear: eu sou um anarquista encarniçado, com pouca ou nenhuma empatia às leituras e às interpretações da realidade social dotadas de certas distrações pós-modernas. Trocando em miúdos: Deleuze, Guattari, Derrida, Butler, NÃO NOS SERVEM! Se servem para algo, servem para causar fissuras em um possível campo de força política de classe que se pretenda ser impenetrável. São quinta coluna em potencial.

Primeiro ponto: que o brasil, tal como o construímos é produto de genocídio, estupro e sequestro de indígenas e de suas terras; é produto de escravidão, pilhagem estupro, sequestro e exploração de civilizações africanas inteiras; de que toda a relação de trabalho possui a marca de civilizações e agrupamentos étnicos afro-ameríndios, com as transformações da dinâmica de um regime capitalista predatório tardio como o nosso, mesmo tendo mudado tão pouco sua estrutura em relação a essas civilizações, as intenções dos regimes liberais da vez atuam de outra forma. Enquanto que teremos, em um futuro próximo, um contingente de mão-de-obra lançada em um limbo entre trabalho esporádico / obsolescência vs uma casta de especialistas-tecnocratas, vejo a esquerda contemporânea, incluindo diversos movimentos anarquistas, se distraindo com as ditas pautas identitárias e nenhuma menção a dois axiomas que afasta em definitivo qualquer tara liberal: LUTA DE CLASSES E REVOLUÇÃO. Insisto, não estou negando a importância de tais posicionamentos e atuações, MAS, ao se dedicar a tais pautas e se esquecer que se deve vir junto, e primordialmente, o axioma CLASSE TRABALHADORA E REVOLUÇÃO, tais pautas servirão muito bem para expandir e aprimorar a dinâmica do capital, ofertando espaços restritos de seletividade para o exercício da tal representatividade e empoderamento. Cabe lembrar de forma cristalina: os mesmos termos, os mesmos jargões, as mesmas exigências de múltiplos movimentos sociais, dotados exclusivamente de caracteres identitários, também se encontram nas lábias dos políticos liberais. A razão é simples: representatividade e empoderamento são práticas que expandem e aprimoram a demogracinha liberal burguesa. E é aqui que se encontra um marcador divisório: para nós, anarquistas, a luta é pela implosão de tal regime, e não em construir uma falsa diversidade na luta por inserção de um contingente plural nas elites nacionais (que aliás, eles nem permitirão). Se cada grupo étnico, geracional, de gênero quer uma burguesia setorial para chamar de sua, esta não é a tarefa dos anarquistas. Este tema está muito bem trabalhado pelo paquistanês Asad Haider, “A Armadilha Identitária: raça e classe nos dias de hoje” (Ed. Veneta, 2019). Trocando em miúdos, toda luta identitária que não traga em seu prefixo CLASSE TRABALHADORA e em seu sufixo REVOLUÇÃO SOCIAL E GUERRA DE CLASSE, do ponto de vista de uma transformação social radical é, para o nosso campo, resolutamente, inerme e, simultaneamente, eficaz para os nossos inimigos.

Segundo ponto: e aqui vai um desafio para nós. Dadas as radicais transformações nas relações de trabalho com robotização, inteligência artificial, digitalização de funções extinguindo de postos de trabalho, tal conjuntura já está compondo um cenário aterrador, ao menos para nós trabalhadores(as). Com a uberização-precarização, perda de poder de negociação via sindicatos pelo seu enfraquecimento, pulverização de mão-de-obra com as terceirizações e quarteirizações, o que virá a ocorrer é a extinção do exército de reserva e produção de um exército obsoleto. A formação de um imenso contingente populacional inoperante. Em suma nem descartável será. Essa força de trabalhadores(as) lançada forçosamente à inutilidade, um desafio, uma tarefa para nós se impõe: como organizar um contingente tão disperso cujo único vínculo possível de se criar identidade, pertencimento e solidariedade era o trabalho? Creio que seria este mote que reflexão-atuação que nós anarquistas devemos focar nossos esforços, se quisermos, ao menos, lançar um olhar transformador no porvir rumo a uma democracia popular direta focado sempre no ódio de classe, os sem-trabalho / sem riqueza.

Suas considerações finais.

Como me alonguei demais, quero somente deixar aqui meu sincero e singelo agradecimento aos(as) ilustres camaradas pela atenção, gentileza e cordialidade. Agradecer por este rico e febril espaço de reflexão crítica e atuação política. Parabéns a cada um(a) dos envolvidos(as) do Instituto de Estudos Libertários que já possui um legado ímpar para cada ácrata presente. Saúde, Revolução, Tesão e Anarquia.

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