Instituto de Estudos Libertários entrevista Maria Zerfall

Abril de 2024

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Quem é Maria Zerfall?

Trabalhadora na área da Saúde, do SUS, mulher periférica, mãe, futura assistente social, feminista, anarquista e punk. Alguém que, desde que se deu conta das injustiças da sua condição social e do mundo, procura fazer a sua parte e não se sente adequada a este sistema.

Quando teve contato pela primeira vez com o anarquismo?

A primeira vez que ouvi falar sobre anarquismo foi quando vi a minissérie na TV: “Anarquistas graças a Deus”. Tinha por volta de 13 anos, muitas angústias, inquietações, curiosidade e questionamentos. Procurei me informar com a professora de Geografia e o professor de História. A professora de Geo me emprestou  um livro do Sartre e outro do Lênin, ambos eu li, e não me identifiquei com o conceito do comunismo de Lênin (e é claro que mais adiante, com um embasamento mais sólido, justifiquei aquela impressão de não identificação com o “comunismo” estatal ). Acabei encontrando em um sebo, o livro ”Anarquistas e a democracia burguesa”, que é uma coletânea de diversos anarquistas clássicos, e um texto do Lênin, que não tem o mínimo sentido de estar no livro.

  Confesso que, na época, nem tudo compreendi. Afinal, não tinha ainda bagagem para isso, mas intuitivamente me identifiquei com as propostas anarquistas.

Daí em diante, fique com uma grande inquietação para conhecer pessoalmente quem eram os tais anarquistas e, se possível, participar de alguma movimentação.

O meu professor de História, na época, me deu o endereço do CCS (Centro de Cultura Social), que na época, 1988, era no Brás, fui junto com uma amiga que também estava curiosa. Fomos muito bem recebidas pelo Jaime Cuberos, que nos deu o informativo do CCS, exemplares do “Lampião da esquina” e “O Inimigo do Rei”.

O Jaime Cuberos foi uma pessoa da qual guardo uma recordação boa, de muito carinho, respeito e admiração. Era um senhor acessível e atencioso com todos, independente da formação e da idade.

Apesar do maravilhoso acolhimento do Jaime, me senti deslocada do ambiente, pois na época, em sua maioria, era frequentado por homens de meia idade e idosos, de formação universitária e classe média. Não sentia que era um ambiente para uma adolescente pobre e periférica. Isso eu fui encontrar no movimento punk, afinal a maioria tinha uma realidade semelhante e idade próximas. Claro que continuei a frequentar o CCS, a fim de ter embasamento teórico, mas os meus pares, no momento, estavam no punk.

Você se identifica com alguma corrente histórica do pensamento libertário?

 Com o anarcocomunismo. E o Errico Malatesta, na minha opinião, é o teórico cujos escritos mais envelheceram bem dentre os anarquistas clássicos.

Nos fale de seus primeiros tempos de militância.

 Quando comecei no movimento punk, comecei a fazer fanzines (e os considero muito importantes como veículos de informação, expressão e para desenvolver um pensamento crítico e autodidata) e ir a manifestações, mas sentia que isto não era o suficiente.

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Quando comecei a participar do MAP/SP (Movimento anarcopunk), é que realmente dei meus primeiros passos em direção a uma militância, sendo autodidata, amadurecendo as ideias a partir de debates, muitas leituras, reuniões e troca de conhecimentos e reflexões, assim como adquirindo experiência em como organizar eventos e manifestações.

Eram tempos em que a maioria das coisas eram escassas. Tínhamos que descobrir por nós mesmos, pois havia pouca informação nesse período pós-ditadura (e me refiro ao teórico e prático, não só sobre anarquismo, mas de contracultura e lutas e movimentos sociais como um todo).

Como você entende a presença anarquista nos movimentos populares?

Eu acompanhei esse inicio de reorganização, dos fins dos 80 e início de 90, quando ainda não estava tendo essa inserção, no máximo, na questão sindical. Nessa época, o movimento era basicamente acadêmico e de estudos ou essa a velha guarda que sobreviveu à clandestinidade da ditadura.

A inserção em movimentos populares veio, em sua maioria, de quem veio do anarcopunk ou de outros jovens que vieram do meio punk. Tivemos que partir quase do zero, e até procurarmos agrupamentos ligados à esquerda para se inserir em lutas ligadas à moradia, movimento negro, feminista e GLBTT (que na época ainda era GLS). Daí posteriormente, surgiram organizações, por exemplo como a OSL, dentre outras.

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 E é claro que é determinante participarmos das lutas populares e de minorias, até porque somos parte destas mesmas minorias sociais, trabalhadores e muitos periféricos.

 Acredito que mudanças são feitas partir das conquistas sociais, comportamentais e de mentalidades que as minorias sociais provocam e reivindicam.

Nos fale sobre as organizações das quais fez parte.

Fiz parte do MAP/SP durante muitos anos, particpei do CAF (Coletivo anarcofeminista), Rede feminista Obirin Onija e GRML (Grito de revolta das mulheres libertárias), fiz vários fanzines, participei de vários eventos beneficentes e contraculturais, bandas, de Sindicato na área da Saúde (que não deu muito certo). Em alguns momentos, fiz poucas atividades, pois existe uma sobrecarga enorme quando a gente se torna mãe, sobretudo quando são pequenos e a rede de apoio (quando se tem a sorte de ter alguma) é insuficiente; mas estou sempre em movimento, consegui poucos resultados na área da saúde, mas espero que agora que estou prestes a ingressar no Serviço social, tenha mais oportunidades de participar e contribuir ativamente com as demandas populares. Penso que é sempre importante praticar os princípios anarquistas não só em um grupo formal do qual se participa, mas no nosso cotidiano.

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Como você caracteriza hoje o anarquismo em SP?

Já foi mais forte, numeroso e organizado, como na época do MPL e dos espaços anarquistas que havia (como Mafalda, Lagartixa, Ay Carmela, dentre outros), mas segue com certa pluralidade: tem o pessoal acadêmico, luta em prol de minorias, como o pessoal que apoia a causa indígena e de inserção cultural.

O que representou julho de 2013 na sua vida?

Não participei presencialmente porque estava com bebê recém-nascido e amamentando. Mas claro que estava a par de tudo dos debates e embates. Conheço muitos que estavam participando ativamente. Infelizmente, foi uma movimentação que foi cooptada e desvirtuada.

A direita se aproveitou da insatisfação popular, e influenciou muitos a só serem contra a política da esquerda institucional, como se fossem uma alternativa e solução do problema, sendo que eles são os principais responsáveis pelos problemas sociais. Com isso, muitas personagens reacionárias que ainda tinham certa timidez de se assumirem, vieram para a luz do dia sem receio nenhum. Aberrações neoliberais, como MBL e o fascismo caricato (mas não menos perigoso) que é o bolsonarismo, um recrudescimento do fundamentalismo evangélico e o aumento de discurso de ódio e backlash contra as minorias e suas lutas. Não foi só algo prejudicial para a esquerda institucional que sofreu golpe político, mas vejo que foi péssimo para qualquer movimentação de caráter progressista, incluindo o anarquismo.

O anarquismo é viável?

    Essa é uma pergunta que pode ser respondida por vários ângulos. A curto prazo, no processo histórico, acredito que não, porque ainda temos uma luta enorme de combate contra essa nova fase do capitalismo, que é o neoliberalismo (com seu desmonte da consciência de classe trabalhadora e seu discurso que cada um é “empreendedor de si mesmo” – como fala o filósofo Byung Chul Han) e esse crescimento da extrema direita nos seus vários âmbitos e sua estratégia de espalhar fake news. Estamos em um momento de perda de direitos e tentando manter os que ainda existem. Acredito que nesse meu período de existência não verei o anarquismo existir em larga escala, porém acredito no processo de luta e de mudanças sociais e de mentalidades.

    Experiências são possíveis e praticáveis, como no caso do povo curdo de Rojava. pode ser que não vejamos nada dentro do anarquismo clássico, mas experiências de autonomia e autodeterminação dos povos, desafio e extinção do poder, sejam eles quais forem porque o anarquismo não é só uma luta contra o Estado, mas contra o poder em si e seus micropoderes e opressões.

Em última análise, o que não é viável é o capitalismo. Se a humanidade não o superar, e mudar a chave, estamos fadados à extinção.

Sempre lembro da fala do chefe Seattle, que lá nos idos do século XIX era profética e resume isso: (…)”O que ocorrer com a terra, recairá sobre os filhos da terra. (…) Seu apetite devorará a terra, deixando somente um deserto.”

O capitalismo é destrutivo e autofágico, mantê-lo será nosso suicídio coletivo.

Suas considerações finais.

O anarquismo para mim, não é só uma apreciação intelectual, ou algo como muitos procuram, de fazer parte de um grupo, de um meio. Para mim, é algo visceral, que deu voz para a minha inadequação social e de ser e estar nesse mundo. Eu me vejo como uma pessoa que nasceu já pré-determinada nesse mundo para perder, se sujeitar, aceitar e servir, e eu ousei dizer não! É difícil e doloroso bater de frente com o que a sociedade impõe? Claro que é, mas não vejo ninguém que se resigna sendo feliz, só quem obtém alguma satisfação nesse meio social é quem tem algum privilégio, quem é rico, e mesmo estes, tem uma existência vazia só com o propósito de consumir, acumular e cultivar sua ganância. Então prefiro seguir dessa forma, pois não consigo me ver apática e confortável perante as injustiças.

Como dizia Albert Libertad: ” A resignação é a morte! A rebelião é a vida!”

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